"Foi então, pela primeira vez, promulgada a lei
agrária, que, desde aquela época até hoje, nunca mais foi discutida sem
provocar as mais violentas emoções", escreveu o historiador romano Tito
Lívio, quase 2.000 anos atrás, sobre um episódio ainda mais antigo, a
redistribuição de terras ordenada pelo tribuno Caio Graco um século antes. Se
Tito Lívio, que morreu há 1.980 anos, soa tão atual é porque a reforma agrária
nunca foi discutida sem provocar violentas emoções. Reforma agrária não é
simples instrumento para dar terra aos sem-terra. Como desafia o direito Ache
os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. de propriedade e
chacoalha a estrutura de poder, carrega consigo o espírito de uma autêntica
revolução social. Mais de quarenta países experimentaram projetos de
redistribuição da posse da terra neste século - e nenhum deles permaneceu o
mesmo depois disso.
Caio Graco pagou com a vida a ousadia de desapropriar os
latifúndios patrícios. No final do século XVIII, a Revolução Francesa implodiu as
relações de trabalho no campo, abolindo a servidão rural. Meio século depois,
os Estados Unidos moldaram o destino do país ao distribuir de forma igualitária
a terra pública. Apesar dessas marcantes experiências do passado, a reforma
agrária, do jeito que hoje se pratica, é um fenômeno inteiramente moderno. A
ordem estabelecida no campo foi virada de cabeça para baixo pela primeira vez
em 1910, com a Revolução Mexicana, ao preço de 1 milhão de mortos. À frente de
um exército de camponeses, Emiliano Zapata distribuiu terras na marra e, como
Caio Graco, acabou assassinado. A semente plantada na revolução demorou duas
décadas para germinar. Mas nos anos 30 o México entregou 70 milhões de hectares
de áreas agrícolas a 3 milhões de lavradores, realizando uma das maiores
redistribuições de terra da História.
Sete anos depois da Revolução Mexicana, os comunistas russos
aboliram a propriedade privada da terra com um decreto assinado no dia seguinte
à tomada do poder. O abismo ideológico entre as duas experiências pioneiras
marcou, dali para diante, a história das mudanças nesse âmbito. O México tomou
a terra de grandes fazendeiros e a distribuiu entre vários, menores,
multiplicando o número de proprietários. A União Soviética expropriou a terra
de todos em benefício de um único grande patrão, o Estado, o nome verdadeiro da
"propriedade do povo". Os dois modelos foram amplamente copiados,
quase sempre misturados e adaptados às circunstâncias específicas de cada país.
Bandeiras vermelhas e camponeses em armas, contudo, tão marcantes nas duas
reformas pioneiras, raramente voltaram à cena. A reforma agrária é quase sempre
iniciativa de governos às voltas com crises, que precisam resolver ou amainar.
Algumas foram impostas por exércitos de ocupação, como fizeram o Exército
Vermelho na Europa Oriental e os Estados Unidos no Japão e na Coréia do Sul.
O objetivo básico das reformas em países não comunistas é
melhorar a vida do homem do campo e redistribuir a renda a seu favor. Depois da
II Guerra, percebeu-se também que se tinha ali um excelente instrumento para
dar à agricultura um papel estratégico no desenvolvimento dos países pobres.
São dos anos 40 e 50 as quatro grandes experiências em países de economia de
mercado - Japão, Taiwan, Coréia do Sul e Egito -, com decisiva influência nas
que vieram depois. Como os três primeiros se transformaram em potências
econômicas, suas experiências servem como vitrine. Comparadas à coletivização
forçada na União Soviética, a grande experiência socialista nos anos 30, que
custou 6 milhões de mortos e resultou numa agricultura até hoje ineficiente, as
reformas asiáticas são mesmo de dar água na boca.
No final da II Guerra, os três países tinham em comum a
enorme concentração da posse da terra e a economia destroçada. Cerca de 70% do
solo agrícola japonês era cultivado por arrendatários - os kosakus -, que
entregavam aos proprietários ausentes metade da produção. No comando das forças
de ocupação americanas e, como tal, imperador de fato, o general Douglas
MacArthur simplesmente exigiu uma reforma agrária em 1946. O governo japonês
tentou safar-se propondo o teto de 5 hectares para as propriedades rurais -
artifício que, visto o tamanho nanico do latifúndio japonês, limitaria a
reforma a somente 20% das terras. MacArthur, que tinha entre seus objetivos
aniquilar o poder político dos latifundiários, um dos pilares do militarismo
japonês, impôs 1 hectare, o tamanho de uma chácara de fim de semana no Brasil.
O terreno excedente foi desapropriado a preço vil e
revendido aos agricultores com financiamento camarada. Toda essa revolução, que
entregou lotes a 4 milhões de famílias e acabou com os resquícios de feudalismo
na estrutura social, demorou apenas 21 meses. "Ao incorporar os kosakus ao
processo político, a reforma foi fundamental para a modernização do país",
diz Ikutsune Adachi, diretor do Centro de Pesquisas Sociais em Agronomia, em
Tóquio. Do ponto de vista macroeconômico, a contribuição foi bem menor. O
minifúndio japonês, nascido da reforma de 1946, depende ainda hoje para sobreviver
de gordíssimos subsídios estatais e produz o arroz mais caro do mundo. É mais
negócio, porém, pagar para manter o agricultor no campo do que lhe dar emprego
na cidade.
A ironia é que essas grandes transformações foram obras de
governos profundamente anticomunistas. Expulso da China continental pela
vitória comunista, o generalíssimo Chiang Kai-chek reproduziu o modelo japonês
em Taiwan. A inovação local foi a indenização parcialmente paga em ações,
convertendo os antigos latifundiários em sócios da industrialização do país. O
resultado social foi de tirar o chapéu: em 1952 a reforma agrária tinha
transferido aos agricultores o equivalente a 13% do PIB, pacificando o campo e
criando uma nova classe de consumidores.
A situação sul-coreana era agravada pela falta de espaço (só
4% do território é cultivável), pela má distribuição da posse e pela guerra,
que continuou devastando o país até 1953. O governo anunciou regras tão severas
que a maioria dos proprietários, temendo o calote das indenizações, se apressou
em vender a terra diretamente ao arrendatário. O impacto na distribuição de
renda foi superior ao ocorrido no Japão e em Taiwan e garantiu a comida barata
de que o país precisava para se transformar numa potência econômica.
De forma muito parecida com a Coréia do Sul, só 4% do solo
egípcio era aproveitável para a agricultura. A maior parte dessa terra estava
nas mãos de uma classe de 12.000 proprietários. Dez milhões de felás - os
camponeses e arrendatários do Vale do Nilo - penavam sob aluguéis exorbitantes,
que chegavam a 75% da produção. Seis semanas depois de derrubar a monarquia, em
1952, Gamal Abdel Nasser acabou com as grandes propriedades. Cerca de 1,7
milhão de egípcios receberam lotes com tamanho médio de 1 hectare cada um. Em
quantidade de terra e número de beneficiados, foi a maior reforma agrária dos
anos 50. O resultado, contudo, nem se compara ao dos países asiáticos. O regime
detonou o poder dos latifundiários - mas os felás continuam miseráveis como
sempre.
O pós-guerra foi também o período em que a União Soviética
impôs seu modelo agrícola à Europa Oriental, ainda que a maioria dos países
tenha conservado algum tipo de pequena propriedade individual. A China fez a
maior revolução camponesa de todos os tempos e, no início dos 60, Cuba implantou
a versão caribenha da agricultura coletiva. Diante do avanço comunista, a
reforma agrária ganhou impulso, também, como ferramenta da Guerra Fria. Na
periferia latino-americana, governos de alguma inclinação esquerdista
produziram suas próprias reformas. No Peru e na Bolívia, com grandes populações
indígenas, a redistribuição de terras aliviou injustiças mas pouco contribuiu
para aumentar a produção ou amenizar a miséria. No Chile, o processo foi
peculiar. A reforma, iniciada pela Democracia Cristã e ampliada pelo socialista
Salvador Allende, obviamente tropeçou com o golpe militar. A ditadura, porém,
não devolveu a terra à velha oligarquia rural. Os lotes, de tamanho reduzido,
foram comprados por capitalistas urbanos, que modernizaram a produção e iniciaram
o modelo moderno de exportação de alimentos, principalmente frutas.
A reforma agrária saiu da agenda dos países a partir dos
anos 70. Ou já tinha sido feita, com resultados variados, ou não era mais
necessária como fator de desenvolvimento. "Até os anos 60, ela era
fundamental para a modernização. Depois, a produtividade da agricultura moderna
mostrou-se capaz de garantir o abastecimento sem outra revolução que a
tecnológica", analisa o professor Bastiaan Reydon, do Núcleo de Economia
Agrícola da Unicamp. "Como a própria agricultura perdeu importância na
economia global, a reforma agrária reduziu-se a uma questão de justiça
social." Os teóricos do desenvolvimento, que também saíram de moda, agora
mudaram de enfoque e temem que a fragmentação do solo agrícola em propriedades
menores prejudique a escala da produção.
"Reforma agrária dá certo quando se consegue o que se
queria, seja aumentar a produção de alimentos, seja resolver problemas sociais
graves", ensina o professor José Eli da Veiga, da Faculdade de Economia da
USP. "A História mostra que isso só acontece naquelas realizadas
rapidamente, de um a três anos no máximo. Quando entrava, é porque a sociedade
não está preparada e a reforma está condenada ao fracasso." Mudanças
radicais na posse da terra não são garantia absoluta de benefício econômico.
Muitas vezes, nem mesmo de justiça social. A agricultura soviética oferecia
condições de vida tão ruins que, para impedir a migração para a cidade, o
governo negou passaporte interno aos membros das fazendas coletivas até 1974. O
fim do comunismo não mudou muito as coisas, exceto pelo fato de que agora os
agricultores podem largar o campo. Por falta de interessados em se tornar
proprietários, o Estado continua dono de 95% da terra.
No México, onde tudo começou, a reforma agrária agoniza. O
ejido, a propriedade comunal explorada individualmente, segundo a tradição
indígena, viveu anos de relativa prosperidade entre 1940 e 1965, mas retrocedeu
diante da produtividade crescente das modernas empresas rurais. Sessenta anos
depois da revolução, o México está de volta ao ponto de partida. Em Chiapas, no
extremo sul, alçou-se o exército de camponeses que reivindica a estirpe
zapatista. Na terra onde nasceu, a reforma agrária produziu um paradoxo
dramático: transformou uma imensa massa de sem-terra numa imensa massa de
pequenos proprietários sem perspectivas. É o que de mais parecido existe com o
Brasil.
REvista Veja.